Guerra de guerrilha no exclave de Cabinda está à vista da Comunidade Internacional e é um facto (in) desmentível.
Raúl Tati
Nos últimos tempos o diferendo de Cabinda, um conflito negligenciado pela comunidade internacional, volta à ribalta com alguma acutilância. Alguns factos recentes merecem uma reflexão serena pela sua pertinência. Vou reservar estas linhas para partilhar com os leitores alguns comentários sobre essa matéria tendo em conta o seu interesse para a opinião pública nacional e internacional.
O conflito de Cabinda existe ou é uma utopia ?
Do ponto de vista da ontologia existem entes reais e entes da razão (ens rationis). Os entes reais são aqueles que estão fora das causas e se manifestam como ens a se (não depende doutro ente para existir) ou ens ab alio(depende doutro ente para existir). Neste caso, ontologicamente Deus é um ens a se; o ser humano é um ens ab alio. Segundo a lógica formal, tudo aquilo que depende doutro ente para existir tem de ter uma causa. Como se diz na gíria, não há fumo sem fogo. Neste sentido, se o problema de Cabinda fosse um ens rationis, deveríamos deduzir que ele só existe na esfera especulativa do intelecto humano manifestando-se ora como um devaneio racionalista ou idealista, ora como um fenómeno onírico. Todavia, a própria experiência empírica faz do problema de Cabinda um fenómeno observável cujas raízes estão bem enquistadas na sua historicidade. Logo, qualquer negação da sua existência enquanto fenómeno político e sociológico revela uma deficiência gnosiológica do seu sujeito na medida em que contradiz o princípio da veracidade que S.Tomás de Aquino definiu como adequatio intellectus ad rem (a sintonia entre a mente e a realidade).
Porém, essa deficiência pode ser deliberada – e neste caso estaríamos diante duma ignorância culpável – ou sincera, estaríamos assim diante duma ignorância desculpável. O primeiro caso peca contra o princípio ético da bondade porque está eivado de malícia. No segundo caso, só poderá incorrer na maldade ética se não realizar o esforço intelectivo e volitivo de buscar a verdade: é um imperativo moral esforçar-se pela busca da verdade. Para além destes dois pólos, temos uma terceira posição que consiste na dúvida metódica (René Descartes) ou suspensão do juízo (a epochê do estoicismo). Mas esta dúvida metódica (ou cepticismo) não pode ser sustentada como critério da verdade. Deve ser entendida apenas como uma etapa do processo gnosiológico.
Com base nestas premissas, temos três categorias: aqueles que negam liminarmente a existência do problema de Cabinda, aqueles que reconhecem a sua existência e aqueles que preferem não arriscar palpites sobre o problema. Cabe aqui aos leitores a escolha da respectiva carapuça. Quando um problema se apresenta desta maneira passa a ser uma quaestio disputata seguindo a lógica da dialéctica (tese-antítese-síntese). No actual estádio vejo o problema de Cabinda ainda como uma fase de contradição entre teses e antíteses. A seu tempo essa contradição vai desembocar na síntese que é a sua solução. A solução, por via de regra, passa por uma negociação entre as partes para a construção do acordo. O acordo, na teoria da negociação, é o corolário do processo de construção do BATNA (The Best Alternative to a Negociated Agreement, ou seja, a melhor alternativa para um acordo negociado).
Retrospectiva dos factos mais recentes
Dizia que o problema de Cabinda está na ribalta nos últimos tempos. Vamos aos factos mais relevantes. A organização duma reunião intercabindesa em Accra (Gana), com a facilitação da ONG local Organização para o Desenvolvimento Africano (OAD), entre 21 e 24 de Outubro de 2019, é o primeiro facto que trago nesta reflexão mesmo sem entrar no mérito ou demérito da iniciativa. A reunião que aconteceu no Centro Internacional de Treinamento para a Manutenção da Paz Koffi Annan (KAIPTC) tinha o propósito de levar ao Gana Cabindas do interior e da diáspora, sejam elas figuras políticas/militares ou activistas cívicos. Desde a sua fase preparatória a iniciativa suscitou algumas diatribes no seio dos movimentos cabindas. Por isso, alguns que lá deviam estar abstiveram-se, sobretudo as duas facções armadas lideradas respectivamente por Emmanuel Nzita e Alexandre Tati. Para eles os propósitos da reunião eram opacos e triviais, visão não partilhada pelos vinte e dois participantes que se empenharam em prol da iniciativa. Curiosamente a reunião teve o beneplácito do Presidente João Lourenço que engajou a sua equipa dos serviços de inteligência externa (SIE) na organização do evento. Isso explica o envolvimento pessoal do chefe de Estado ganês, Nana Addo Dankwa Akufo-Addo, que a 9 de Agosto de 2019 realizou uma visita de Estado a Angola, tendo sido recebido pelo Presidente João Lourenço e pelo Parlamento angolano onde discursou. Nessa reunião foi criada uma estrutura denominada Alto Conselho de Cabinda (ACC). Tal como na fase preparatória, na fase posterior à reunião voltou a haver diatribes entre os participantes por causa de algumas desinteligências e divergências estratégicas. A reunião contou com a presença e apoio da igreja católica na pessoa do Arcebispo de Accra, Monsenhor Charles Palmer Buckle.
Entretanto, a FLEC-FAC passou a emitir comunicados de guerra e a exibir nas redes sociais imagens dos seus combatentes em parada militar e de efectivos tombados em combates. Nos últimos tempos passaram a ser mais frequentes os comunicados de guerra com baixas de ambas as partes. As fontes oficiais em Angola sustentam que se trata apenas duma fabricação. Mas não o conseguem demonstrar. A imprensa passou a dar eco aos comunicados da FLEC contrariando o silêncio do regime em Luanda. Sempre que pôde a imprensa aproveitou para ouvir as autoridades do país sobre o assunto. Há tempos soube da entrevista do antigo Ministro angolano das Relações Exteriores e actual Secretário-Geral da Organização dos Estados da África, Caraíbas e Pacífico (ACP), Georges Rebelo Chikoti, concedida à Agência Lusa (29.06.2020 – 07:19) a partir de Bruxelas. O diplomata angolano defendeu que o Estado angolano sabe como lidar com as tensões em Cabinda, tendo em conta a sua experiência na resolução dos conflitos internos. Para ele não há crise nenhuma que seja insolúvel. Por seu turno o académico português, Dr. Tenente-Coronel Luís Brás Bernardino defendeu que Portugal não devia entrar nesse assunto para manter a neutralidade, embora reconhecendo o papel histórico de Portugal em relação a Cabinda. O Dr. Bernardino reagia ao pronunciamento do líder da FLEC-FAC, Emmanuel Nzita, que apelou o engajamento de Portugal na resolução do conflito de Cabinda supostamente por Cabinda manter ainda o seu estatuto de protectorado português.
Em relação às declarações do diplomata Georges Chikoti, a questão que se levanta é: se o Estado angolano reconhece que existe o conflito e tem capacidade para o resolver, por que não o faz? Quanto à pretensão de ser um problema interno, a realidade no terreno mostra que é um problema que afecta interesses de terceiros cuja resolução pode envolver alguns Estados tradicionalmente identificados com o diferendo de Cabinda como os países limítrofes (RDCongo e RCongo), França, EUA e Portugal. Relativamente à opinião do Dr. Bernardino, creio que por uma questão de coerência, Portugal também não devia ter assumido o problema do Timor-Leste até à sua resolução. Talvez possa concordar que Portugal por manter em Angola interesses petrolíferos e outros negócios milionários, não esteja em condições de fazer advocacia do direito de Cabinda à sua autodeterminação. Na política as decisões obedecem ao critério da rational choice (escolha racional entre custos e benefícios).
Outro facto relevante foi a adesão da FLEC-FAC ao cessar-fogo unilateral na sequência do apelo do Secretário-Geral das Nações Unidas por ocasião da pandemia da Covid-19. Este facto teve o devido reconhecimento do Secretário-Geral da ONU ao incluir Angola na lista dos países com conflitos militares, mais concretamente na região de Cabinda. A FLEC é mencionada como grupo armado dentre outros. Um caso inédito que bem merecia uma adequada reacção diplomática da parte interessada. Para o regime em Angola esse desenvolvimento compromete o statu quo imposto ao Povo cabindês.
A todos esses factos, acresce-se a denúncia pública das autoridades congolesas (RDC) relativamente às incursões militares das FAA em território congolês no encalço dos guerrilheiros da FLEC. Segundo o porta-voz do Conselho de Ministros da RDC, na sua 36.ª sessão realizada a 19 de Junho de 2020, esse incidente seria submetido às instâncias regionais, sem descurar os contactos bilaterais com a República de Angola.
Entretanto, já tivemos a reacção do Ministro da Defesa de Angola, João Ernesto dos Santos, no Parlamento angolano ao ser questionado pelo Deputado Raul Danda, do Grupo Parlamentar da UNITA, sobre a acusação vinda do governo da RDC. Na oportunidade disse que os efectivos das Forças Armadas Angolanas estacionados em Cabinda cumprem as missões que lhes são atribuídas e que têm a ver com a defesa e protecção dos principais sectores estratégicos. Por outro lado, segundo o mesmo, eles também defendem e protegem a fronteira juntamente com as unidades da Polícia de Fronteira. Assim, as unidades das FAA que estão no interior de Cabinda não têm ordens de atravessar a fronteira nem com a RDC, nem com RC para ali realizarem acções militares. Elas estão no espaço de Cabinda para cumprir as orientações e instruções do comando superior das FAA. Nesse sentido, elas estão prontas a responder a qualquer provocação. Mas nunca atravessaram a fronteira… Foi nestes termos que o Ministro se dirigiu aos Deputados da Assembleia Nacional. É impressionante a facilidade com que se contam ´´historinhas da carochinha´´ aos Deputados do Povo! É pena que o senhor Ministro assumiu a pasta da Defesa há bem pouco tempo e talvez ainda não tenha lido todos dossiês. Talvez por uma questão de amnésia, o senhor Ministro já não se recorda da invasão dos dois Congos pelas FAA em 1997, resultando no derrube dos respectivos governos do Marechal Mobutu e do Professor Pascal Lissouba. Se a denúncia das autoridades da RDC é falsa, no mínimo temos de admitir que viram fantasmas e não efectivos das FAA no seu território.
Por seu turno, o General Pedro Sebastião, Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, veio a terreiro tentar desdramatizar o fluxo de informações sobre a guerra em Cabinda. Por um lado, admitiu a ocorrência de ataques aqui e acolá, mas atribuiu os mesmos a grupos comparáveis aos marginais que fazem assaltos armados em Luanda ou em Benguela. Por fim reiterou que a paz em Cabinda é efectiva. As reacções não se fizeram esperar e a própria FLEC convida o senhor Ministro a visitar as suas bases. Na revista Zimbo do último domingo (19.07.2020) os ilustres convidados foram confrontados por uma questão incómoda pelo jornalista Amílcar Xavier: há ou não há conflito em Cabinda? Com algum desconforto visível ambos deixaram as suas opiniões. Para o senhor Deputado João Pinto há grupos no território que reivindicam e há conflitos aqui e acolá. Defendeu que há paz efectiva e foi esta a sua impressão quando esteve em Cabinda durante uma semana. Por sua vez o senhor Deputado David Mendes negou que houvesse ´´estado de guerra´´ em Cabinda. Bom, aqui convém esclarecer que negar o estado de guerra não é mesmo que negar o fenómeno da guerra. O estado de guerra enquanto um dos estados de necessidade constitucional (art.º 203 CRA) carece de uma declaração por decreto. Tanto quanto saiba nunca houve uma declaração de estado de guerra para Cabinda. Se este for o entendimento, estou de acordo com o Dr. David Mendes. Mas se o que o Dr. David Mendes quis negar mesmo é a guerra em Cabinda, então faltou à verdade. A guerra de guerrilha tem características próprias como a imprevisibilidade, contínua mobilidade, baixa intensidade, assimetria, desgaste do inimigo e não se trata de uma guerra convencional. É com base no conhecimento desses pressupostos que podemos aferir da existência da guerra ou não em Cabinda. De resto, recordo o imperativo moral de buscar sempre a verdade.
Conclusões
Um dos problemas fundamentais que tem estado a impedir a evolução do conflito de Cabinda para uma solução é a falta da verdade. Há muita mentira e muita manipulação. Isso faz parte do jogo na medida em que a manipulação é usada como arma de diversionismo. Foi assim durante o nazismo cuja máquina de propaganda concebida pelo oficial Yosef Goebels transformava as mentiras inverosímeis em verdade pela sua contínua repetição. Mas a Alemanha saiu derrotada. É o que estão a fazer com a situação em Cabinda. Mas isso não vai dar bons resultados, pois tem apenas o mérito de perpetuar o conflito. Os dirigentes angolanos acabam por fazer um papel ridículo, porque nos dias de hoje o controle da informação é uma miragem porque a sociedade tem diversificadas fontes de informação. Quando a comunicação institucional navega no pântano corrosivo da desinformação, perde credibilidade diante da opinião pública. A sabedoria dos cabindas ensina que podemos comer ginguba debaixo do rio, mas a casca virá sempre ao de cima.
Fonte : Jornal O Kwanza